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Francisco Moura cresceu, trabalhou e quase morreu na Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços

Preso ao lugar com centenas de memórias, o operário contou à New in Seixal como foi viver na fábrica até se tornar guia do museu.
A história da fábrica em pessoa.

Celeste da Conceição Gomes de Moura era guarda portão e João Gouveia de Moura trabalhava na granulação, ambos na Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços. Os dois apaixonaram-se e tiveram um filho em comum. A 15 de fevereiro de 1965 uma ambulância ia a toda a velocidade para Cacilhas, era lá que a viatura ia para dentro do barco e seguia para Lisboa, já que não existiam pontes.

Na altura havia algumas regras no que toca a esta travessia. Caso o barco ainda não estivesse a metade do rio tinha de voltar para trás para vir buscar o carro de emergência. Assim aconteceu, a meio do rio Tejo nascera um bebé com 780 gramas, a quem foi dado o nome de Francisco Moura.

Apesar de não ter sido prematuro, nasceu pequeno e com pouco peso. Por isso, desde cedo que teve de lutar pela vida. Foi para a maternidade do Hospital de São José em Lisboa onde recuperou e foi tratado com todas as condições. Hoje, com 58 anos, recorda tudo aquilo que passou e a grande ligação que tem com a Fábrica de Pólvora. “A minha mãe trabalhou aqui quase 40 anos e o meu pai trabalhou 42, foi aqui que fui criado. Quem guarda o portão tem uma pequena casa e foi lá que passei a minha infância, era onde a minha mãe podia tratar de mim”, conta Francisco à New in Seixal.

Foi nessa mesma casa que viveu até aos 17 anos, o que proporcionou uma vivência fora do comum, afinal não existiam outros miúdos com quem pudesse conviver. “Cresci dentro de uma fábrica onde lidava só com pessoas mais velhas, aqui não havia miúdos, eles estavam no bairro operário, o que fez com que crescesse sozinho. A área dos carbonizadores, onde se faz o carvão vegetal, era a única zona em que não existia pólvora, por isso eu ia para lá conversar com os trabalhadores”, confessa.

De Francisco passou a Chico, era assim que os “antigos” o tratavam. Era um moço de recados, ia até ao bairro operário buscar umas cervejas e algum vinho, no final tinha sempre um miminho, uma pequena gorjeta. Era muito acarinhado pelos trabalhadores, tanto que no dia das broas, onde se recebia o subsídio de Natal, cada empregado dava um pouco a Francisco. No final da noite tinha mais de 500 escudos no mealheiro.

“Comecei a fumar muito cedo, os trabalhadores quando chegavam ao portão tinham de deixar o tabaco pois lume e pólvora não se dão muito bem, então eu tirava um cigarro a cada maço e assim arranjava o meu tabaco, comecei a fazer isto desde os oito anos”, recordou. Assim foi até completar o 4.º ano de escolaridade aos 11 anos. A partir daí foi trabalhar para a construção civil. A vida foi assim, difícil e muito trabalhosa, mas é mesmo desta forma que Francisco gosta de levar tudo.

Aos 17 anos saiu da casa da Fábrica de Pólvora e foi viver para o bairro operário. Ficou lá até completar 22 anos, época em que decidiu voltar para a fábrica, desta vez para trabalhar. Foi para as galgas, uma estação onde se mistura a matéria-prima para se criar uma pólvora de qualidade. Quando foi destacado para este local, foi colocado como responsável. “Lá, estava um homem com idade para ser meu avô e outro com idade para ser meu pai. Ao início não caiu bem, um tipo novo responsável e os mais velhos não, mas como me conheciam desde miúdo as coisas acabaram por encarrilhar”, revela.

A ideia sempre foi trabalhar na fábrica e ser maquinista, afinal manusear a máquina a vapor era “um lugar de relevo”. Quando o dono da fábrica ia até às instalações, passava sempre pela máquina e falava com o maquinista.

“Manter a máquina operacional e limpa era um orgulho, a pessoa que ia para lá tinha de ter uma grande responsabilidade. A máquina é o gerador de energia mecânica de toda a fábrica, se a máquina não funcionar a fábrica deixa de produzir. Por isso quem ia para lá tinha de chegar mais cedo que os outros, para garantir que tudo estava a funcionar e colocar a máquina a funcionar”, explica.

Mais de 25 anos separam estas imagens.

Com muito amor à profissão, Francisco ia mais cedo para o trabalho aprender a mexer na máquina com António Zé Pereira, último maquinista antes de Francisco. O diretor fabril não sabia deste entusiasmo e destes ensinamentos, só descobriu quando António foi para a reforma e avisou que já tinha um substituto.

Em setembro de 1989, aos 23 anos, Francisco tornara-se naquilo que sempre quis: o maquinista da Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços. Esta máquina, uma Joseph Farcot, é a única que funciona na Europa e apenas Francisco consegue fazê-la trabalhar.

“Quando a fábrica foi transformada em museu, a ideia era por a máquina bonita, aquilo estava cheio de pombos e ferrugem, mas acabei mesmo por colocá-la a funcionar”, explica. A máquina estava abandonada há alguns anos devido ao encerramento da fábrica em 2003, sendo que só em 2007 é que se começou a tornar o espaço numa extensão do Ecomuseu do Seixal.

O acidente quase fatal e os 17 dias em coma

Durante o processo de musealização foi necessário limpar as oficinas e retirar todos os resíduos de pólvora, afinal só uma fotografia com flash pode desencadear uma explosão. Por vezes caía pólvora da linha de produção, o que estava no chão nunca mais volta para a confeção. Se viesse algum grão de areia no meio da matéria-prima podia fazer faísca ao passar pelas máquinas, o que ia causar uma explosão.

Com o acumular de resíduos durante anos tinham-se juntado cerca de oito toneladas de pólvora que precisava de ser destruída. Para isso foi designada uma equipa de homens que trabalhavam na fábrica, Francisco foi chamado para ser responsável pelo rastilho lento.

Estava a chover no dia 4 de abril de 2002, Francisco lembra-se de tudo de uma forma muito clara. Estava tudo a decorrer conforme o planeado, até que, subitamente, houve uma grande explosão. Dois homens morreram, uma mulher ficou ferida e Francisco ficou com 72 por cento do corpo com queimaduras de segundo e terceiro grau.

“Fui apanhado pela explosão, mas fiquei consciente. Senti que estava a arder e rebolei no chão, o meu irmão estava lá ao pé e correu para me rasgar a roupa, a que restava. Toda a gente se apercebeu do incidente, eu não tinha noção de como estava, não tinha dores, as queimaduras eram muito profundas e destruíram os tecidos nervosos. No entanto, pensava que estava bem”, recorda.

Foram buscar Francisco num carro e quando chegou à saída da fábrica já lá estava uma ambulância à espera. Quem o viu ficou apavorado com o estado em que se encontrava. Entrou na ambulância e adormeceu durante 17 dias. Ficou em coma e foi hospitalizado no São José. Foram seis meses deitado, cerca de 70 anestesias gerais, 18 paragens e arritmias cardíacas, mas sobreviveu. Costuma dizer que São Pedro achou que ainda estava “mal passado” e mandou-o para trás.

Já recuperado, em 2003, voltou para o ramo da construção civil, não conseguia estar parado de maneira nenhuma. Em 2007 regressou à fábrica, mas já com o equipamento com a vertente de museu. Carrega lembranças, histórias como os namoricos da fábrica, onde os homens iam deixar pão, cartas e comida nas batas das mulheres, para que quando pegassem no dia seguinte tivessem um conforto, era assim o romance às escondidas, mas à vista de Francisco.

“Gostava de ver esta fábrica melhor ainda, de olhar para isto e ter aqui uma pessoa para me ajudar, para eu ensinar e um dia ser eu a vir a uma visita. Para mim era um orgulho enorme transmitir o meu conhecimento e ficar descansado por saber que a fábrica está bem entregue”, desabafa.

Francisco trabalhou neste fábrica com dois irmãos e uma irmã, João António Gomes de Moura, Fernando Rodrigues de Moura e Alcina da Conceição Moura Bastos. Com os pais, já mencionados, três primas, um primo, uma tia, um tio e um cunhado. Um local de trabalho, uma casa, uma família. Este é o sentimento eterno que está marcado no coração de Francisco Moura.

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