Ana tinha apenas 15 anos quando começou a trabalhar para ter a sua independência financeira e para ajudar os pais e os quatro irmãos, com quem vivia no Seixal. A mãe trabalhava na fábrica “Seca de bacalhau” e limpava casas, enquanto o pai trabalhava nas obras que iam aparecendo. Na altura, arranjou o primeiro part-time na pizzaria Verde e Amarelo. Um ano depois passou para a Pizza Hut, onde trabalhou ao mesmo tempo que estudava na Escola Secundária José Afonso.
A adolescência, como se percebe, foi dura. Enquanto os amigos e colegas aproveitavam a vida noturna, ela tinha de fazer os turnos da noite. Estes episódios ajudaram a formar um carácter de resiliência e superação que acabaria por dar resultados. Hoje, Ana Cláudia dos Santos Varela diz com orgulho o seu nome completo e acrescenta que é natural da Arrentela. No final, acaba com uma frase simples: “No passado dia 17 de novembro, fui campeã da categoria Wellness da NPC IFBB-PRO, em Milão, Itália”.
Foi um longo caminho para chegar aqui. No final da adolescência, interrompeu os estudos para se aventurar no Algarve em busca de uma trabalho melhor. Na altura, foi contratada por um hotel da região, onde aproveitou o bom ordenado para pagar a carta de condução. Voltou para o Seixal em 2001, aprendeu a conduzir e acabou o 12.º ano em regime de aulas noturnas.
Nos três anos que se seguiram, concorreu às forças especiais da PSP. Ana Varela superava todas as provas físicas com distinção, mas um problema crónico nos olhos acabava sempre por lhe barrar a entrada, devido aos critérios médicos. Enquanto esperava pelas provas, trabalhava em hotelaria ou em algumas lojas da cidade. O mesmo problema impediu-a de realizar uma carreira profisisonal no mundo dos desportos de combate. Como precisava do dinheiro e de tempo livre para o ganhar, nunca chegou a ir para a universidade, onde tinha o sonho de tirar algo relacionado com desporto.
“Na altura os licenciados em desporto ficaram sem emprego. Como incentivo para que, quem tirasse licenciatura, conseguisse emprego mais facilmente na área, decidiram a acabar com os cursos profissionais desportivos. Além disso, as empresas e escolas só passaram a aceitar treinadores com licenciatura. Isto fez com que não conseguisse trabalhar na área desportiva desde cedo”, conta Ana à New in Seixal.
A ligação com o desporto sempre existiu. Era aluna de cinco a educação física, jogava basquete, fazia boxe e aeróbica. No fundo, aproveitava todas que a escola pudesse oferecer. Participava ainda nos corta-matos e fazia birras monumentais quando não conseguia vencer e ter a nota máxima.
Os anos foram passando, Ana conseguiu um trabalho como estafeta de análises clínicas, um part-time que lhe ocupa três horas do dia e que continua a fazer até hoje. Pelo meio, quando tinha 26 anos, foi mãe da sua única filha e passou por uma separação difícil. Estes foram os ingredientes que a motivaram para entrar pela primeira vez num ginásio.
“Era muito magrinha, oscilava entre os 52 e os 57 quilos, mas quando estava grávida engordei 20 quilos, adorava o meu corpo. Foi nessa altura que decidi entrar no ginásio IronMan, que ficava ao pé da Torre da Marinha. Tinha lá dois amigos que praticavam culturismo e até competiam. Gozava muito com eles por serem homens num palco em cuecas”, revela.
Começou então treinar, mas sem a intenção de competir ou ser profissional do ramo. Na altura, era mãe solteira e emagreceu porque estava em baixo, mas garante que “nunca” se sentiu deprimida. Os amigos, com quem treinava, disseram que se ela deveria tomar anabolizantes para obter resultados mais rápido e ficar com “um corpo espetacular”, capaz de lhe levantar a autoestima. Ana adorou a ideia, por isso, ao fim de apenas uma semana de treino e uso de esteroides, engordou 10 quilos. Todos os atletas do ginásio ficaram incrédulos e disseram que “nunca tinham visto nada assim”.
“Comecei a tomar alguns esteroides mal comecei a treinar, não é algo que se deva fazer e, olhando para trás, percebo isso. Na altura estavam lá outras mulheres que iam competir e que me deram mais vontade de fazer aquela transformação corporal. O foco e a motivação são as coisas que realmente fazem a diferença. Eu só tomo anabolizantes quando estamos perto da competição, para segurar a massa muscular. Fora das competições apenas conto com o meu exercício e dieta”, explica.
Em 2012, assumiu o compromisso com os donos do ginásio seixalense de que queria entrar em provas de culturismo. Competiu, pela primeira vez, logo no ano seguinte e nunca mais parou. Ana começou na categoria Biquíni Fitness, até que o júri disse que tinha de subir de patamar, para o Figure. Enquanto fazia a transição de categoria, ficou de olho noutra categoria: a Welness.
“A Welness, na altura, não existia em Portugal. Basicamente é a definição do corpo que todas as mulheres querem ter. Menos massa muscular nos membros superiores e pernas e rabo gigantes. No fundo, é o típico corpo brasileiro. Falei com a federação portuguesa e, em 2016, a categoria chegou a Portugal”, acrescenta.
Mesmo com a competição em território nacional, Ana teve de esperar até 2020 para ingressar neste segmento, já que durante quatro anos teve de perder o volume de braços e peito, que eram demasiado grandes para as especificações da prova. Durante este espaço temporal, tirou um formação de personal trainer e começou a trabalhar em ginásios da Margem Sul. Hoje, é PT no Blvckout Gym.
“A preparação foi difícil, não saia à noite, não jantava fora e gastava imenso dinheiro na minha comida. Muitas carnes brancas, peito de frango, peixe, batata-doce, aveia, ovos e iogurtes proteicos. Cheguei a consumir 3200 calorias diárias durante o bulking, o processo de ganho de peso. Hoje tenho 67 quilos e 1,60 de altura”.
Toda esta dedicação deu frutos. Em novembro, Ana Varela subiu ao pódio da competição de masters, atletas acima dos 35 anos, em Wellness na Itália, o que lhe valeu o cartão profissional da categoria, um enorme feito para a seixalense.
“Na competição eu fui chamada em último para a linha, ou seja, fiquei na ponta. Tive medo que o júri não reparasse em mim por esse fator, mas rapidamente chamaram-me para o meio e isso queria dizer algo. Na apresentação individual vi a cara deles, um ar de espanto. Estive sempre no meio e acabei por ficar em primeiro lugar, parecia que estava a sonhar. Depois disso, competi no overall, uma junção das vencedoras de todas as categorias”, conta à New in Seixal.
E acrescenta: “Houve um engano no número quando estavam a chamar a vencedora do overall, subiu a palco a pessoa errada, depois pediram desculpa à atleta e chamaram-me. Queria festejar, mas vê-la arrasada e com o mesmo sonho que eu, tirou-me a alegria. Abracei-a, desejei sorte e só quando cheguei ao balneário é que me caiu a ficha. Tinha sido uma das grandes vencedoras do evento”.
Ana estava prestes a abandonar a competição,mas a verdade é que este troféu e o apoio incondicional do seu marido e Treinador José Simões criou uma nova ambição na Seixalense. Agora o objetivo é apurar-se para o maior evento do mundo do Culturismo, o Mr.Olympia, em Las Vegas, e conquistar o prémio de melhor físico do Mundo. Já se está a preparar para as próximas competições de qualificação para o evento.
“Tenho experiências boas e más com o meu corpo. Muita gente, especialmente miúdas do ginásio, admira-me. Mas, às vezes, quando não tenho cabeça para certos olhares na rua, visto casacos e tento-me tapar um pouco. É tudo estranho, porque quem acha que isto não é normal são pessoas em baixo de forma. De resto, aceitam muito bem e até brincam com o facto de ter este físico”.