Nasceu em Lisboa, tem as raízes em Cabo Verde e escolheu o Seixal — mais precisamente Arrentela — para morar. Sempre foi nesta dispersão que Nuno Santos se organizou como artista, seja como AKapella 47, Xullaji ou, mais recentemente, como Prétu. Apesar das diferenças que separam estes universos, todos eles se encontram num meio termo: as palavras que denunciam as desigualdades sociais.
Através do spoken word e da música, expressa-se como artista e homem negro, ao mesmo tempo que se junta a outras causas sociais como a das mulheres, que o faz recordar a luta vivenciada pelas matriarcas da sua família. Neste universo que criou, tem o que chama de “esquizofonia”, uma mistura de caminhos sónicos e artísticos que explora de diferentes formas.
Esta sexta-feira, 26 de maio, chega ao Seixal para a quarta edição do Festival do Maio, o evento de música que junta a arte à política e que este ano conta com outros nomes como Moullinex, Gabriel, o Pensador, Sam the Kid e Peaches. À NiS, o rapper partilhou como organiza os diferentes universos, o que se pode esperar do festival e os projetos futuros.
Ao longo dos anos, tem adotado vários pseudónimos associados ao seu nome próprio que têm variado mediante os diferentes projetos que tem feito. Em que se baseia para fazer essas mudanças?
Os pseudónimos, no fundo, são uma maneira de tentar arrumar a minha cabeça que é tão dispersa. Gosto de fazer muitas coisas ao mesmo tempo como música, teatro, spoken word e, por isso, estava tudo muito misturado. Eu mesmo já fui tendo necessidades. Por exemplo, a forma estética como se faz spoken word não tem nada a ver como faço rap ou produção. Depois, também tem a ver com as diferentes componentes. Em Xullaji, raramente faço beats, gosto de pegar nas das pessoas, escrever e rimar. Já no Prétu, é um universo musical que está na minha cabeça e não é sobre as letras, produzo primeiro e depois escrevo por cima. Então, não sei se são pseudónimos, costumo dizer que é uma “esquizofonia” no sentido em que são caminhos sónicos e artísticos que vou seguindo e quando dou por mim, já é uma coisa diferente e tenho de dar outro nome.
Como organiza cada um deles e o que deu origem ao Prétu?
O AKapella 47 é só spoken word, Xullaji é um projeto de rap puro e duro em que escrevo rimas sobre o meu contexto social e político, como ser um homem negro a viver na Margem Sul com todas as questões de classe, raça e género que vou vendo à minha volta e o Prétu foi uma coisa que foi nascendo, quando dei por mim, já existia. Não foi algo intencional, sempre gostei de produzir mas não tinha máquinas para fazer beats e quando comecei a arranjar, foi quando este universo musical surgiu. Sempre que faço beats, uso samples africanas e não americanas. Quando comecei a produzir, aquilo saía mais como uma música eletrónica, que gosto muito, mas africana. Por isso, percebi que não tinha nada a ver com o que eu fazia em Xullaji, era uma coisa diferente, era o Prétu. No fundo, o Prétu não sou eu, não tem nada a ver comigo. É uma canalização de várias entidades de arquivos cosmológicos e de música que é tanto samplar um disco, como usar uma frase da Bell Hooks ou invocar um orixá, um ancestral meu e juntar tudo isso na mesma música. Buscar um discurso daqui, uma bateria dali e compor música de uma série de universos estéticos, políticos e espirituais que me acompanham. É este multiverso, esta conjugação de entidades que não são propriamente eu. Sou um canal a partir do qual isso nasce.
Mencionou algumas lutas com a qual se identifica e o Festival de Maio é um evento onde estas andam de mãos dadas com a arte. Qual a importância de iniciativas como esta que abordam a liberdade de expressão e chamam a atenção para essas questões?
Sempre que a sociedade está naquela fase em que se “fascitiza” mais, a cultura é a primeira coisa que é calada. A cultura chama a atenção para certas questões e depois é amplificada para o regime e para o capitalismo que é repetir mais do mesmo, amplificar as mesmas palavras de ordem. Neste sentido, é muito importante que a cultura que protesta assuma o seu papel. Agora, não é por ser um festival que chama a liberdade que vai a seguir. É preciso que o princípio por detrás desse e das bandas seja algo que traga um aspeto anti-capitalista e que não seja só uma programação. No seu todo, é preciso que este evento consiga deixar esse espaço reflexivo nas pessoas.
Além das lutas com que se identifica como Nuno, costuma tratar de outras próximas de si, como fez com a das mulheres no tema “Fidju Maria” com a participação de Dino D’Santiago. Há alguma conexão entre estas questões?
No caso das mulheres, não dá para fazer nenhuma luta sem estar com elas. Não é uma coisa que se escolhe, fui criado por uma mulher e a maioria das pessoas que lideraram a minha família eram mulheres. A minha mãe teve três filhos homens e teve de nos educar a partir dos seus princípios. Sempre crescemos com uma mulher muito trabalhadora que veio para esse País limpar e cozinhar e que morreu nesse trabalho. A questão da mulher negra, pobre e que vem do interior de Cabo Verde para cumprir o papel que criaram para ela de servir uma patroa para que esta possa ser emancipada e, ao mesmo tempo, chegar a a casa e ter de servir o seu papel de criar os filhos e estar com o marido é um aspeto que sempre nos foi tocando. Ver as mulheres da minha família, como as irmãs da minha mãe, na sua batalha sempre me foi chamando a atenção. Por outro lado, quando comecei a ler Angela Davis, Bell Hooks e houve logo essa consciência que foi um acaso mas que levou logo para esta questão de não poder haver uma luta só de homens, ou que só fala do racismo porque esta depois tem as suas nuances como género e classe. Negro como eu, que vive na Margem Sul, nunca experenciei o racismo sem a classe e, ao mesmo tempo, o contrário também não é possível. Estas lutas estão sempre associadas umas às outras e quando as partimos, estamos a fazer o que o sistema capitalista quer que é dividir para conquistar. Essas questões têm de ter sempre o seu espaço e a sua luta. No caso das mulheres, é super importante. O Prétu fala nisso, mas no Xullaji também tem várias músicas sobre esse tema. Obviamente, sou um homem a falar sobre mulheres mas não estou a falar sobre elas em si, mas sim o que vivi com a minha mãe e em relação às minhas companheiras, não querendo estar nesse lugar de fala mas percebendo como é que funciona à nossa volta.

O Nuno nasceu em Portugal mas tem as raízes em África e já abordou várias vezes as lutas dos imigrantes. Ao longo dos anos que tem trabalhado como artista, notou alguma alteração no sentido de haver mais oportunidades para os imigrantes no mundo artístico ou não?
Neste momento, estamos a viver uma fase em que se confunde poder com visibilidade. Há todo um discurso de ocupar o lugar de fala e esta visibilidade está a criar uma certa ideia que, se calhar, as pessoas estão a ter mais oportunidades. Isso é verdade, existe uma maior visibilidade mas o que tenho muitas dúvidas é que esta esteja a construir algum tipo de estrutura porque no fundo nós estamos a ter mais visibilidade dentro das próprias instituições que sempre foram racistas e capitalistas. O que nós estamos a fazer é infiltrar e empoderar essas instituições. Por exemplo, em Portugal ainda não vi crescer nenhuma estrutura negra alternativa a essas instituições. No fundo acaba por ser mais um aspeto sobre visibilidade individual como o artista tal negro, ou o tal LGBTQIA+ ou a tal mulher que ocupou aquele lugar. Mas a comunidade em si, o que vejo quando chego ao meu bairro é que o preço da comida subiu mais e há mais pessoas negras a passarem por grandes dificuldades. O preço das rendas também aumentou, por isso, estão a expulsá-las da minha zona, entre outros. Mas claro que os artistas, que somos uma minoria desse País, alguns estão a conseguir ocupar os seus lugares mas isso não está a ter um impacto numa escala desejável. Portanto, esta pergunta é sempre uma ratoeira porque a visibilidade e o próprio Carmichael já tinha dito isso há 60 anos: “Black visibility is not black power.” Por isso, é muito difícil de entender [risos], especialmente por ocuparmos certos palcos e certas instituições, estamos a mudá-la. Há quem ache que estamos a mudar por dentro, mas se a lógica não muda, só estamos a continuar a legitimar o sistema racista, colonialista, capitalista e imperialista que sempre nos lixou. Essa reflexão tem de ser feita. Essa é a minha opinião e digo-a muito perentoriamente.
Para o Festival do Maio, o que podemos esperar do espetáculo?
Vamos fazer um espetáculo de uma hora com aquela música eletrónica africana e a componente visual. Percussão é comigo e Mick Trovoada, vamos levar John D’Brava nas cordas, a Alesa e a Raquel do grupo de teatro “Peles Negras Máscaras Negras” que fazem as vozes e a carrilha portanto, vai ser fixe. Vai ser sempre palavra de ordem para os africanos.
E para este ano, o que tem planeado?
Depois de acabarmos os concertos do Prétu, vamos fazer uma peça com o grupo “Peles Negras Máscaras Negras” que estreia no final de julho. É de uma música do Prétu mas tem como foco esse fascínio com a tecnologia e o capitalismo de vigilância.
Já vive no Seixal há algum tempo. O que mais gosta no concelho?
Neste momento, é difícil responder a isso porque sinto que o concelho está muito centrificado e especulado. Mas sempre gostei daquela baía incrível, da vivência das pessoas, daquela altura diferente do Seixal e também de toda a cultura alternativa que ali se criava. Agora, há sempre uma reconfiguração do espaço do Seixal que preciso entender qual é para poder dizer que ainda gosto como gostava. Mas sempre gostei muito e em Portugal, se quisesse viver noutro sítio, era mais para o Sul.