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Vem aí uma série documental que conta alguns dos casos mais importantes da PJ

“PJ7” estreia na RTP esta quinta-feira. Aborda as investigações ao Rei Ghob, ao Violador de Telheiras, entre outras.
Polícia Judiciária colaborou no projeto.

Alimentado pelas plataformas de streaming como a Netflix ou a HBO, pelos podcasts internacionais ou pelos canais temáticos próprios (como o ID — Investigation Discovery ou o Crime + Investigation, em Portugal), o género televisivo das séries documentais de crime tem-se tornado cada vez mais popular.

Após “Depois do Crime”, a RTP aposta noutra produção sobre casos de justiça em Portugal. “PJ7” foca-se nalgumas das operações mais complexas com que a Polícia Judiciária teve de lidar ao longo dos anos. É um projeto conjunto da produtora Skydreams Entertainment em colaboração com a Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária e a própria Direção Nacional da PJ. 

A estreia aconteceu na quinta-feira, 16 de março, às 22h45. Cada episódio centra-se num caso. As operações em análise são: Rei Ghob, Gangue do Vale do Sousa, Anonymous, Operação Levante, Meia Culpa, Remédio Santo, Homicídio do Rio Trancão e Violador de Telheiras. 

Cada capítulo inclui entrevistas com inspetores, peritos criminais ou outras personalidades que possam dar testemunhos relevantes sobre os casos. Aborda-se os métodos da PJ para investigar cada situação e os contornos dos diversos crimes. É uma iniciativa que também vem na senda do 75.º aniversário da PJ em 2021, quando foi lançado um livro oficial desta entidade, “Um Diamante de Histórias”, com 75 testemunhos.

A NiT falou com Gil Carvalho, coordenador superior de investigação criminal aposentado, sobre os dois casos em que foi chamado a falar para esta série documental. Estão relativamente relacionados: são o Meia Culpa e o Gangue do Vale do Sousa.

Gil Carvalho, que hoje é comentador de assuntos de justiça no Porto Canal, considera importante “desmistificar” e “dar a conhecer” o trabalho de instituições como a PJ, que, neste caso, é o “sustentáculo e a base” da justiça. Mas também sublinha que os episódios não revelam — nem poderiam revelar — todos os detalhes. Apenas aquilo que pode ser tornado público.

O Meia Culpa era um bar de alterne em Amarante. Em 1997, três homens armados e encapuzados invadiram o espaço, regaram o local com gasolina e atearam fogo. Entre o pânico que envolveu todos os que estavam no interior, 13 pessoas morreram. Os três atacantes agiam a mando de José Queirós, proprietário do bar rival Diamante Negro. Todos foram condenados a penas de prisão de 25 anos, o máximo permitido por lei em Portugal. O caso ficou conhecido como o “massacre de Amarante”. 

A investigação levou a que as autoridades recolhessem mais informações sobre as redes ligadas ao crime no circuito da noite do Grande Porto. Nesse período havia com alguma frequência agressões, mas também tentativas de homicídio e mesmo homicídios ligados aos seguranças dos estabelecimentos noturnos. Havia grupos organizados a querer disputar a segurança dos vários espaços. Alguns dos casos começaram a ser investigados pela Polícia Judiciária — Gil Carvalho era o chefe de brigada que lidava com o banditismo.

Um desses grupos ficou conhecido como os Ninjas. “Eles queriam tomar conta da segurança marginal da noite do Porto. Eram indivíduos daquela zona toda, até se definiam como um exército. Começámos a ver que ia dar problemas”, explica Gil Carvalho.

Certo dia, o dono do Meia Culpa, António Almeida, e a sua namorada, são atingidos a tiro por elementos ligados a este grupo dos Ninjas. “Queriam ficar com a segurança da discoteca dele. É isso que dá origem a um processo por associação criminosa.” Depois, num incidente em Cabeceiras de Basto, quando um dos líderes dos Ninjas é chamado depois de um problema numa discoteca e é atingido com vários tiros, a Polícia Judiciária começa a investigar.

Os Ninjas tinham várias armas de fogo ilegais e eram considerados “extremamente perigosos”. Praticavam extorsões e eram contratados para fazer “cobranças difíceis”. “Roubaram armas a indivíduos envolvidos no acidente da GNR em Lousada. Tentaram entrar pelo posto da GNR de Penafiel. Deram tiros em várias pessoas. Era um grupo extremamente violento e que já nos estava a causar muitos problemas — até na investigação. Ao mesmo tempo estavam a surgir muitos assaltos a transportes de valores e bancos. Havia vários grupos e não os tínhamos identificado a todos.”

É através de uma escuta telefónica que a Polícia Judiciária apanha o rasto do grupo que poderia estar a assaltar bancos e carrinhas de valores. Esse grupo ficaria conhecido como o gangue do Vale do Sousa, mas também como o “gangue dos Ferreiras”. Falavam em “canas de pesca” para se referirem às armas — mas as referências a um armeiro local, que mais tarde também seria preso, deixavam claro aquilo de que realmente estavam a falar.

“Vimos logo que eram armas. E logo na semana em que aquilo se passa, naquele telefone, começam a falar em código para outros números de telefone que não tínhamos identificado. E começam a falar de números e de ‘brancas’ e ‘amarelas’. Os números identificavam as carrinhas e as ‘brancas’ eram da Securitas, enquanto as ‘amarelas’ eram da Prosegur. E aí percebemos.”

Aconteceu tudo muito rápido. Formou-se uma equipa para tentar seguir as pessoas que tinham ouvido nas escutas. Em Amarante, conseguiram identificar carros que tinham matrículas falsas e que estavam a controlar uma carrinha junto da Caixa Geral de Depósitos. Seguiram-nos para um restaurante, onde conseguiram vislumbrar os rostos de alguns. Mas era de noite, estava escuro, e não os reconheciam.

A operação prosseguiu no dia seguinte. Foram ouvidos mais telefonemas e a PJ foi atrás dos criminosos em Marco de Canaveses. Foi nesse dia que identificaram naquele grupo Cláudio, um homem que também estava envolvido em crimes dos Ninjas. “Os outros não conhecíamos. Eram os três irmãos Ferreira e o cunhado Bessa. Eles, mais o Cláudio e o Paulo Cunha, outro indivíduo ligado aos Ninjas, foram quem fizeram o assalto nesse dia.”

A PJ estava a controlar, em colaboração com as empresas de transporte de valores, duas carrinhas que estavam na zona. Mas apareceu uma terceira, recheada com 125 mil contos, para um serviço ocasional de abastecimento de papel de uma máquina de multibanco. Foi essa que foi assaltada. 

Gil Carvalho estava na base a coordenar a operação, mas a perseguição da PJ terminou de forma trágica. Os criminosos, que seguiam em três carros, emboscaram os inspetores e usaram as metralhadoras que possuíam. João Melo, inspetor da PJ que tinha apenas 29 anos, foi assassinado por José Augusto Ferreira. Poucas horas depois, todos foram detidos menos o homicida, que fugiu para Vigo, em Espanha, onde mais tarde seria preso por outros crimes.

O julgamento foi complexo. Cada criminoso teve de responder por crimes distintos e o homicídio foi julgado à parte do processo de associação criminosa. O caso arrastou-se e a maioria dos elementos do gangue do Vale do Sousa saíram em liberdade porque tinha expirado o prazo máximo de prisão preventiva sem acusação. Foi altamente “polémico”, até porque alguns fugiram do País, o que originou “problemas diabólicos”. “O Bessa só foi preso anos depois, porque fugiu para França.”

A investigação revelou mais detalhes sobre a operação do gangue. Assaltavam carros para usarem nos roubos e todos utilizavam vários telemóveis. Treinavam com as armas num campo de tiro. “Foi o grupo com mais armas, mais altamente organizado… Os assaltos eram altamente planeados. Eles seguiam as carrinhas, eram militarizados. Tinham tudo o que os militares tinham: roupas pretas, fatos pretos, pintavam-se com tinta preta quando faziam os assaltos. Tudo isso foi apreendido. E também contribuiu muito para a condenação por associação criminosa.”

Gil Carvalho acrescenta ainda: “Todos tinham funções diferentes. O mais inteligente era o Nando Ferreira. Era o que fazia os seguimentos das carrinhas, era o que tinha mais informação. O Zé Ferreira tinha uma discoteca em Paços de Ferreira. Era o que tinha o dinheiro para a compra das armas, para os carros, e era um bon vivant. Era um operacional porque tinha sido dos fuzileiros e gostava do risco, da adrenalina e era o tipo das armas. O outro irmão era o António Ferreira. Organizava os telemóveis, guardava as coisas, era o mais bruto deles todos. E já tinha sido condenado por roubo e também fazia parte do grupo dos Ninjas. Depois havia o cunhado deles, o Bessa, que estava casado com uma irmã. Era um indivíduo muito agressivo, mau mesmo. Foi ele que disparou em novembro de 2000 quando emboscaram uma carrinha em Lordelo, e deu um tiro num indivíduo da Prosegur. Esse motorista ainda hoje tem o projétil no pulmão”.

O coordenador superior de investigação criminal aposentado conta que, mais tarde, outros grupos de assaltos a bancos e carrinhas de valor surgiram no norte — dá o exemplo de Os Perucas e de Os Picaretas, entre outros.

Sempre houve mais facilidade de obter armas no norte. Havia aqui armeiros — vários dos quais foram presos, e as suas casas foram fechadas — que facilitavam armas a esses grupos. Na altura também houve o fenómeno dos militares que iam para a Bósnia e vieram muitas armas de lá. Se formos ver o histórico, os assaltos mais violentos sempre foram muito mais a norte do que a sul. Há mais recurso às armas, mais violência, as pessoas cá em cima são mais destemidas… Mais acesso a explosivos também, por causa das fábricas de pirotecnia. E o contrabando. Há uma corda do Minho que vai quase até à Beira Baixa, perto da fronteira, onde também se vendiam muitas armas.”

Quanto ao caso específico do gangue do Vale do Sousa, Gil Carvalho acrescenta que “tinham muitos contactos em Espanha” ou “indivíduos que lhes forneciam os carros”. “A família, o pai e a mãe, eram gente humilde e boa. Nada de anormal. Para eles acho que foi o dinheiro fácil, gostavam de luxos e de viver bem.”

Embora ao longo dos anos tenha havido menos assaltos deste género, Gil Carvalho argumenta que isso se deveu sobretudo às ações internas dos bancos — que começaram a guardar menos dinheiro físico nos cofres, a transportar valores menores, a usar carrinhas como isco e intensificaram outras medidas de segurança.

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