“Não sou assim tão bonita”, respondeu ao jornalista que lhe perguntou se nunca tinha pensado em trabalhar como modelo. Aos 27 anos, gozava finalmente da fama que procurou durante grande parte da vida.
Apesar de só ter um mini papel de cinema no currículo, conseguiu em 1985 ser a protagonista de uma grande produção de Hollywood em “A Testemunha”, ao lado de Harrison Ford, que acabara de criar duas das personagens mais icónicas do cinema: Han Solo e Indiana Jones. Um verdadeiro sonho tornado realidade.
“Quando era mais nova, era muito pesada. Hoje, ainda me vejo como era nessa altura. Na escola ninguém me convidada para sair ou ir ao baile”, esclareceu.
Um ano depois a carreira de Kelly McGillis deu outro salto estratosférico. Desta vez, foi o par romântico de Tom Cruise em “Top Gun” — um filme que foi visto em todos os países, de todos os continentes.
Agora, passadas mais de três décadas, numa altura em que Cruise se prepara para brilhar na aguardada sequela do filme de ação — a estreia deveria ter sido em 2020 mas foi adiada por causa da pandemia —, no elenco não há sinal do nome de McGillis. Como sempre, a própria tem a resposta.
“Estou velha e gorda, tenho o ar apropriado para alguém com a minha idade e isso não bate certo com a cena de Hollywood”, confessou numa entrevista ao “Entertainment Tonight” em 2019.
A atriz que chegou a ser comparada a Grace Kelly tem hoje 63 anos e apesar de continuar a trabalhar como atriz, deixa no ar a sensação de que a velhice é um impedimento para participar nos grandes filmes. Não será só isso. A própria afirma que, a dada altura, se decidiu afastar das produções de Los Angeles.
“Prefiro sentir-me absolutamente segura na minha pele e naquilo que sou com esta idade, ao invés de dar valor a todas essas outras coisas”, concluiu.
A namorada que todos queriam ter
Assim que foi anunciada como a parceira de Harrison Ford em “A Testemunha”, todos as atenções se viraram para a jovem atriz que ainda partilhava casa e trabalhava num café para pagar as contas.
Tornou-se numa estrela de cinema, literalmente de um dia para o outro, graças ao papel de uma viúva Amish que se torna na única testemunha de um crime brutal. Ford é o polícia pelo qual ela se apaixona.
“Não, não, não, não, não”, repetiu diversas vezes quando confrontada com a possibilidade de se casar. “A minha carreira é a coisa mais importante”, confessou à época. Uma afirmação que haveria de contrariar completamente anos mais tarde.
“Tem a honestidade e a simplicidade de uma jovem Grace Kelly, o seu alcance e possibilidades ilimitadas”, elogiou o realizador Peter Weir. Os críticos estavam encantados. “A sua beleza é robusta e inteligente, mas delicada como um quadro de Vermeer”, lia-se no “The New York Times”.
Em 1986, conheceu então Tom Cruise, uma das maiores estrelas daquela década, e a sua vida levou mais uma volta. Aliás, foi o próprio ator quem decidiu fazer uma alteração ao guião: a personagem de McGillis, originalmente uma bailarina, mudou de profissão para professora de astrofísica e instrutora da academia. A justificação? As mulheres belas e maduras estavam a fazer sucesso no cinema.
A opção foi certeira, o par de Maverick e Charlie também e o filme acabou por se tornar num enorme sucesso de bilheteira, com um lucro de mais de 300 milhões de euros.
O papel lançou McGillis numa espiral rumo ao topo de Hollywood, algo que acabou por fazer a atriz mudar radicalmente de opinião. “A fama tornou-me infeliz. Não confiava em ninguém, vivia aterrorizada. Tinha medo de ser reconhecida na rua”, confessou uma década depois, numa entrevista ao “The Independent”.
Tinha tudo com o que sonhou: dinheiro, uma carreira em expansão, beleza. O segredo do medo estava no passado.
Más memórias
Era um caso sério de sucesso, de tal forma que depois de Cruise e Ford, fez novo par, não romântico, mas de cliente e vítima, desta vez com Jodie Foster, que viria a ganhar um Óscar pelo papel.
“Os Acusados”, o filme de 1988 que retratou um caso real de uma violação — que envolveu a comunidade portuguesa, embora o filme nunca o mencione, e que a NiT revisitou neste artigo —, foi a obra que fez os críticos renderem-se ao seu talento.
Infelizmente para McGillis, a trama do filme era demasiado familiar. Foi depois da estreia que sentiu a necessidade de purgar as más memórias e revelar que também ela tinha sido violada por dois estranhos, anos antes de ser famosa, num assalto violento a sua casa.
Os dois homens — um deles tinha apenas 15 anos — arrombaram a porta de casa e, com a ameaça de uma faca, violaram-na à vez. “Estavam sempre a dizer que me iam espancar até à morte. Por essa altura, achava que ia morrer, já estava resignada”.
“Durante as primeiras semanas após o incidente, não era capaz de comer ou dormir. De repente começava a arfar sem que o conseguisse controlar”, contou à “People” em 1988.
O episódio atirou-a para uma depressão. Encontrava alívio no álcool e na comida. Engordou mais de 12 quilos e acabou por ter que ser internada numa clínica de reabilitação. Muitos anos mais tarde virou-se para as drogas.
Ainda assim, a carreira em Hollywood mantinha-se intacta. Em 1989 teve a oportunidade de voltar a brilhar no novo filme de Abel Ferrara, “Sedução”. Sempre insegura, chegou a fazer cirurgias estéticas para tentar integrar-se no meio e, talvez, para ficar em paz com a sua falta de auto-estima.
Chegada ao set de gravações, deu de caras com uma cena que seria sua. Na cama, nua, estava uma dupla de corpo. Perdeu a paciência. “Observei aquilo durante quatro minutos e fui-me embora. Se fazer cinema é isto, nunca mais o quero fazer. Adoro atuar, mas não quero trabalhar com mais idiotas”, confessou. Assim foi.
Mudou-se para o outro lado do país com o marido e as duas filhas e abriu um restaurante. Pelo caminho, Hollywood ficou para trás, mas nem por isso a representação.
Após uma fase mais calma, surge o divórcio e depois os rumores de que mantinha uma relação com uma das suas empregadas. Acabou por assumir a homossexualidade, algo que já tinha negado por diversas vezes.
Apesar de estar afastada das grandes produções, era ainda alvo de muita atenção mediática. “Tentei durante muito tempo não ser eu própria, alguém que não era homossexual, e isso arruinou a minha vida. Mas chegas a uma idade em que simplesmente já te estás a cagar para tudo”, revelou mais tarde.
Na imprensa, o choque. A reconhecida revista gay “Advocate” fez do anúncio um título com grande pompa: “Uma estrela de ‘Top Gun’ saiu do armário. E não é Tom Cruise”.
À medida que foi ficando mais velha, foi também sentindo que podia e devia explicar o seu desaparecimento e todos os dramas e vícios que marcaram a sua vida. Confessou, já em 2009, que muito antes da violação, havia também sido abusada por três homens. Tinha apenas 12 anos.
Exorcizou os demónios a ajudar os outros. Dedicou-se a trabalhar em clínicas de reabilitação e apesar de continuar a aceitar papéis no cinema e na televisão, a fama nunca regressou. E ela também não quer saber.
“Recebia muitas chamadas de agentes a dizerem que tinha dado cabo da minha vida. Já não são os meus agentes. Preocupo-me com o que faço, preocupo-me com o envelhecer. Ter 43 anos nesta indústria e não estar disposta a fazer mil operações é difícil. Quero ser uma atriz de caráter, mas rapidamente não haverá na América atores que pareçam ter 50 anos, porque a idade é tão temida”, explicou em 2001.
Este filme não é para velhos
McGillis tem hoje 63 anos. Mais 14 anos do que Jennifer Connelly, a atriz escolhida para encarnar o novo par de Maverick, que marca o regresso de Tom Cruise ao papel, 34 anos depois. Por sua vez, Connelly tem menos oito do que o protagonista.
As críticas da antiga atriz de “Top Gun” fizeram ressurgir a questão da idade em Hollywood, sobretudo nas mulheres, muitas vezes substituídas por protagonistas muito mais jovens. A disparidade entre pares românticos é inegável: quase sempre são mais novas do que os parceiros masculinos.
Assim que a crítica entrevista se tornou pública, os comentários inundaram as redes sociais. “Isto é o ‘Top Gun’, não é uma sequela do ‘Libertem o Willy’”, lia-se. Outro apontava que era “possível ser sexy aos 60, mas normalmente a apatia vence”. “Ela parece a mãe dele, não a namorada.”
Apesar de ter notado a ausência de qualquer convite para participar no filme — e deixar subentendido o que isso poderá dizer até mais de Hollywood do que de si própria —, reafirma que está feliz assim, desconhecida, a fazer os seus pequenos papéis em paz. E, sobretudo, longe do meio de atores, atrizes e cineastas.
“Não mantive contacto com ninguém”, explica antes de dizer que está feliz por Connelly “ter essa oportunidade”. Hoje, vive com as duas filhas e a nova parceira na Carolina do Norte. Sóbria e feliz.
“Foi desafiante tentar encontrar a minha identidade. Criar as minhas filhas e ser a melhor mãe que podia ser tornou-se a minha prioridade. As minhas prioridades de vida mudaram.”