Hugo Miguel Rabaça Castanheira nasceu na maternidade Alfredo da Costa em Lisboa ou, como gosta de lhe chamar, “no aviário”. Os pais viviam em Paio Pires, no concelho do Seixal, e foi lá que o criaram. Hoje, com 50 anos, é uma das grandes figuras no panorama artístico da cidade.
Com uma técnica “única no País”, o pintor retrata o Seixal em pranchas de cortiça, painéis que simulam os azulejos e outros objetos, como ostras. Recentemente, foi responsável por uma obra junto ao antigo refeitório da fábrica da Mundet, na zona da paragem de autocarro. É composta por três painéis que representam a vida e paisagens daquele local, enquanto funcionava.
A ligação, extremamente forte, com o concelho, faz com que Hugo aposte em vistas, cenários e características do Seixal. Atualmente, pode encontrá-lo no atelier da Associação do Largo Seixal, na zona ribeirinha.
A New in Seixal falou com o artista para conhecer mais detalhes sobre o seu percurso. Leia a entrevista na íntegra.
Porque é que escolheu ir morar para o Seixal?
A minha família vive toda fora do País. Vivo especificamente aqui, porque é o Seixal e estou em Portugal por causa do Seixal. Caso contrário, não estava cá. Esta é a minha casa e é para quem vou dedicar todo o meu esforço, a terra pela qual vou lutar. É o sítio mais lindo do mundo. O meu primeiro painel de cortiça, com 1500 peças, chama-se “Jardim do Paraíso” e é sobre o Seixal. Pintei-o em 2020, no ano da Covid-19. Demorei sete meses a concluir a obra, tive outras que levaram quatro meses, com 600 peças, tudo num modelo de azulejos.
Quando surgiu a sua ligação com a arte?
Quando era um miúdo, já sonhava ser pintor. Nessa altura, era muito influenciado pelo que passava na televisão. Por exemplo, o Vasco Granja tinha um programa de cartoons e achava muita piada. Sempre quis pintar e experimentar as coisas que eles faziam. Já não me lembro do canal, apesar de só existir a RTP1 e RTP2, mas lembro-me que houve um momento em que partilharam cartoons de todo o mundo e isso deu-me uma enorme vontade de ser artista.
As suas brincadeiras também estavam relacionadas com a arte?
Recordo-me que queria ser pintor, um sonho clássico. Porém, o meu pai queria que fosse advogado ou médico. Era o que os mais desejavam, por considerarem que ninguém consegue viver das artes.
Isso também ficou marcado na escola?
Andei na Escola Primária do Bairro Novo e, entretanto, frequentei a Escola José Afonso, que antigamente era conhecida como a cavaquinhas. Até ao 9.º ano, estava decidido a ir para Artes, ao mesmo tempo que jogava hóquei em patins e basquetebol no Seixal. Quando fizemos testes psicotécnicos, os resultados indicaram que devia ir para Ciências e ser informático. Nas aulas de Educação Visual, o meu colega tinha muito mais cuidado a pintar e eu borrava sempre as coisas todas. Ele tinha uma pintura límpida, ficava tudo perfeito. Atualmente, tudo isso tem nomes técnicos, a pintura suja é mesmo um estilo. Por exemplo, pinto com branco, lavo o pincel, mas não lavo totalmente, o que vai dar sempre nuances de outros tons. Pinto sem desenhar e, nessa lógica, é quase impossível pintar limpinho.
Esse facto acabou por desmoralizá-lo?
Sim, mas ao mesmo tempo deu-me outro tipo de motivação no psicotécnico com a informática. Disseram que era bom para mim, mas agora, quando olho para trás, naquela altura não havia informáticos, era uma coisa muito verde e havia necessidade de encaminhar pessoas para essa área e vertente.
Acha que foi enganado?
Considero que sim, mas agora não me chateia porque, de facto, vou dar o exemplo desse meu colega que pintava limpinho. Quando fiz a minha primeira exposição no Seixal, em 2004, por coincidência encontrei-me com esse rapaz. Estava a apresentar quadros e ele não pintava. Ele era designer gráfico, fazia bonecos no computador. Mas o que queria dizer com isto era que a minha vontade de fazê-lo era pessoal, algo que queria e quero. Se calhar não fui, no período em que ia estudar arte, condicionado a fazer um certo tipo de coisas, que era fora daquilo que realmente queria fazer.
Era algo fora do seu gosto de arte e já era um trabalho, é isso?
Exatamente. No caso dele passou. Alguém lhe pede alguma coisa e ele tem de apresentar o trabalho que lhe pediram. É totalmente contra aquilo que eu procurava.
Procura a liberdade?
Sim, comecei por pintar ostras, com a desculpa que não tinha nenhuma formação académica. Se me perguntar como consigo lá chegar com todas aquelas formas, é provável que seja porque não tenho hábito e um padrão a fazer coisas. Jamais me passaria pela cabeça que iria ser capaz de sair fora da caixa.
No entanto, acabou por seguir informática?
Sim, mas depois quando acabei o 12.º ano nunca mais toquei no tema.
Então o que se seguiu?
Fui para Inglaterra em 1992. Aos 18 anos, queria ganhar dinheiro e viver a vida. Fiz os piores trabalhos que possam imaginar, desde lavar panelas, fazer recados, basicamente aquilo que ninguém queria fazer. Mas depois também fiz cozinha, fazia aquilo que aparecia.
No meio desse período de instabilidade, onde é que ressurge a arte?
Entretanto, casei-me com uma inglesa e nasceu o meu primeiro filho, em 1997. Nesse mesmo ano, enquanto estava a preparar o quarto dele, pintei uns bonecos do Garfield e gostei do resultado final. Fiz com uma estampa e pincéis. Ele nasceu em setembro e no Natal desse ano, pedi que me dessem material de pintura, até porque a minha ex-mulher trabalhava num pub, até às 22 horas, e era eu quem ficava com o miúdo. Nesse período, ia trabalhando nas minhas coisas. Comecei a pintar na onda do freestyle e à procura de um estilo, utilizei aguarelas e comecei a investigar materiais. Depois de seis meses de brincadeiras, um colega de trabalho encomendou-me uma pintura.
E que tipo de pintura era?
Fazia uns bonequinhos tipo formigas, era uma metáfora da nossa realidade, de que nós só somos tão grandes quanto o nosso desafio, eu fazia a formiga com uma lata de Coca-Cola gigante e outros tipos de criatividades e cenários surreais. Compraram essa pintura e depois comecei a receber mais pedidos, especialmente de retratos dos filhos ou dos cães.
Fazia tudo isso sem desenho?
Não, nessa altura ainda fazia os traços a carvão. Existem regras que têm de ser cumpridas, mas sempre dei prioridade ao meu amor pela arte. Por isso pensei: “Como posso desenvolver alguma coisa em que não tenha barreiras, que seja livre e espontâneo? Nessa lógica, pensei que se fizesse um desenho, estaria logo a condicionar a minha perceção. Não queria estar numa prisão e encontrei a minha técnica. Agora, com mais maturidade, posso dizer que o valor da arte não está na qualidade da pintura, mas na identidade do traço.
Voltando atrás, como se fechou o capítulo de Inglaterra?
A arte era algo que fazia por gosto enquanto trabalhava numa multinacional. Nessa altura, fui contratado por outra empresa para vir trabalhar num projeto de engenharia e componentes em Portugal. Como já era ambição da minha família vir para cá, foi fácil tomar a decisão.
E para que cidade foi?
Bem, começámos por vir para o Algarve em 2001, para onde foi a minha ex-mulher com os meus ex-sogros. Nesta altura trabalhava remotamente. Separei-me e voltei para o Seixal definitivamente em 2004.
No mesmo ano em que lança a primeira exposição?
Essa foi vontade minha. Entrei em desacordo com a companhia e acabei mesmo por sair da empresa. Nessa altura, abri aqui um atelier de pintura, no qual comecei a fazer peças, a observar o Seixal e a perceber que esta terra tem uma data de apontamentos, que servem de inspiração para criar várias peças. Desde os flamingos aos barquinhos, tem muitos apontamentos específicos de interesse. Aliás, acho que o Seixal é paradisíaco para um pintor.
É uma espécie de musa?
Sim, totalmente, os tons do céu, o rio, as transições do verão e inverno são dramáticas, é fácil arranjarmos conteúdo para pintar. Naquela ideia de lutar pela minha terra, pensei que o Seixal merecia mais respeito e que as pessoas não viessem só para ir à siderurgia. Era legitimo o que faziam em Lisboa, com a quantidade de artes e pinturas, porque não fazer isso no Seixal.
Porquê pintar uma ostra? Existe alguma relação com o concelho?
No Seixal passamos a vida a fugir delas, ficam na areia e fazem muitos cortes nos pés. Queria fazer algo mais barato, para que as pessoas pudessem levar como recordação. Nada melhor do que pegar numa coisa que, para nós, era horrível, e transformá-la numa obra de arte que é apreciada.
Sempre foi capaz de se afirmar como artista?
Não. Demorou algum tempo para admitir que o era. Antes, era o Hugo Castanheira que também era pintor. Hoje, posso dizer que sou só pintor. Todos os empregos que tive foram um caminho para chegar onde estou hoje.
E o que aconteceu ao atelier?
Mantive o espaço durante quatro anos, até à crise de 2008, que me arrasou por completo. Desapareceram os clientes e as encomendas.
Teve de procurar outra forma de sustento?
Este episódio fez com que abandonasse a arte durante quatro anos, pensei que poderia estar num emprego e continuar a pintar, mas não resultou. Entrei no mercado imobiliário, porque não tinha cabeça para mais nada.
Como surgiu a ideia de trabalhar com materiais em cortiça?
Agora, faço o meu trabalho na Associação do Largo Seixal, antiga L1B Associação Cultural, pois estavam prestes a extinguir-se. Abordei a presidente da entidade, de modo a ter um espaço para pintar. Eles tinham muitos pedaços de cortiça espalhados pelo local. Comecei por pintá-los com a minha técnica, as pessoas gostaram e passei a trabalhar peças maiores, depois a pranchas gigantes e, por fim, os azulejos de cortiça. Posso dizer, com toda a certeza, que mais ninguém no mundo faz isto, felizmente.
Teve muitas encomendas?
A primeira peça foi um trabalho realizado a convite da Câmara Municipal do Seixal para ser uma daquelas ofertas que dão a personalidades que visitam o nosso concelho. Gostaram e pediram mais trabalhos. A técnica de pintura da cortiça é exclusiva.
Só trabalha com cortiça?
Também pinto telas, já fiz desenhos em pedras da calçada e até interiores de raízes de árvores.
O que prevê para o futuro?
Sou viciado na pintura.
Não a encara como trabalho?
De todo. Em 50 por cento das minhas peças, perco sempre em termos monetários. A pintura é terapia, o mundo pode estar a cair, mas se estiver a pintar estou calmo, é a minha namorada eterna. Vou-me mantendo ocupado, pretendo continuar a pintar até ser velhinho. Se conseguir, não quero pensar em reforma ou férias. No fundo, não tenho pressa de chegar a lado nenhum.
Carregue na galeria e veja algumas obras do artista seixalense.