Contra todas as expectativas, “Hell’s Kitchen” está vivo. Num daqueles rituais macabros, o programa quis provar que ainda havia motivos para nos colar à televisão e fez um sacrifício de sangue.
Quando, em 2004, Mel Gibson produziu e lançou “A Paixão de Cristo”, foi criticado por, durante mais de duas horas, ter chocado as audiências. Jesus foi cuspido, insultado, pontapeado. Foi vergastado com ferros, chicotes, obrigado a carregar uma cruz e pregado a ela. Foi um banho de violência. A sequela nunca chegou a ser feita.
Mais de uma década depois, João, qual Cristo, entrega-se à fúria de Stanisic — e a equipa, qual Judas, deu-lhe um presente envenenado: a chefia da equipa. O resultado foi o esperado: o episódio mais bizarro do programa.
Também durante duas horas, Stanisic, Lucas, Cândida e Hélder arrastaram João pelo chão da cozinha. Nem Miguel Maldonado, o chef silencioso e inexpressivo, conseguiu conter-se perante a decisão de colocar João a chefiar a equipa: “Tu?”, questionou; “Ajude, porque senão isto não vai correr bem.”
A profecia estava feita, mas o banho de sangue começou muito antes, numa prova de cozinha portuguesa, na qual o cozinheiro alentejano — que diz que a cozinha da região é a sua preferida — conseguiu assassinar umas migas.
“Ele não está a achar piada à maneira como estou a executar as migas. Estava à espera que eu mantesse (sic) o tradicional”, comentou mais tarde o concorrente de 28 anos.
Esse foi apenas o início de um chorrilho de insultos, críticas e desabafos de desespero que se seguiram. “Para de ser poeta, [és um] tangas.”
O homicídio das migas, vítimas de uma morte violenta numa liquidificada, foi transmitido em direto. Pouco tempo depois, salgava uma espuma que deveria ser doce. E o ambiente explodiu assim que o serviço começou.
Se havia algum tipo de minúscula ambição de que a culinária fizesse parte desta história, este episódio tratou de arrumar o assunto. O capítulo de “Hell’s Kitchen” desta semana foi uma bíblia de tudo o que está errado nos reality shows do momento: são exercícios de peixeirada em direto.
Um berra, outro atropela-se em asneiras, um faz queixinhas, a outra espeta-lhe a faca nas costas enquanto João confere o livrinho das desculpas esfarrapadas que, por esta altura, está mais gasto do que o lenço que carrega as lágrimas do Diogo.
João é o tipo com quem nunca quereríamos fazer um trabalho conjunto. É lento, tem pouco conhecimento e usa a tática preferida das vítimas: assume a culpa sem verdadeiramente a assumir.
Mas do outro lado está também um exemplo do que não deve ser uma equipa: João nunca deveria ter sido eleito como chefe; quem o elegeu e cobardemente se esquivou à responsabilidade de salvar a equipa, tem tanta culpa quanto ele; e pouco ou nada justifica que, em 2021, se ordene que um homem adulto fique encostadinho a um canto como um menino do infantário, isto em direto na televisão nacional.
A imunidade dada a João num golpe estratégico de Rafaela virou tudo do avesso e deu a hipótese ao Cristo de serviço para se preparar para a grande ressurreição do próximo domingo. Espera-se nova sessão de tareia psicológica, tão bem pontuada pelos momentos de comic relief de um eloquente Lucas, isto quando conseguimos ouvi-lo por detrás dos pis. “O que o João tem mostrado? É merda.” O prime time está salvo.