“Esta deve ser capaz de acabar com a minha carreira. Segurem-se”, avisou o comediante Jimmy Carr no seu mais recente especial de comédia. “Quando as pessoas falam sobre o Holocausto…” Carr imediatamente pára a frase a meio, como que a convidar uma reação do público. Ouvem-se gargalhadas tímidas e alguma expetativa. Afinal, fazer comédia com uma das maiores tragédias da história moderna é, porventura, uma linha vermelha para muitos.
“Quando as pessoas falam sobre o Holocausto”, retoma Carr, “falam sobre a tragédia e o horror de seis milhões de vidas de judeus, perdidas na máquina de guerra nazi”. “Mas nunca falam sobre os milhares de ciganos que foram mortos pelos nazis.”
“Nunca ninguém fala sobre isso, porque nunca ninguém quer falar sobre a parte positiva”, finalizou o comediante britânico. A piada foi recebida com aplausos, gargalhadas tímidas e outros tantos silêncios constrangedores. Foi preciso esperar mais de um mês para que o especial — e em particular esta piada — lançado em dezembro na Netflix provocasse uma indignação generalizada.
“Nojento” e “grotesco” foram algumas das palavras usadas pelos críticos, alguns deles comediantes, numa onda de críticas que se abateram sobre Carr. Uma das críticas mais duras chegou diretamente de Nadine Dorries, ministra da cultura, que sugere até a criação de novas leis que punam as plataformas de streaming que deem abrigo a conteúdos deste género. Sobre a piada em concreto, descreveu-a como “repugnante” e frisou que este tipo de declarações “não deviam ter lugar na televisão”.
Quem também veio a público criticar a piada de Carr foi Olivia Marks-Woldman, responsável máxima pela Holocaust Memorial Day Trust. “Estamos absolutamente chocados com os comentários de Jimmy Carr sobre a perseguição sofrida pelos povos Roma e Sinti sob a opressão nazi — e horrorizados pela quantidade de gargalhadas que se seguiram aos seus comentários”, escreveu.
“Centenas de milhares de Roma e Sinti [subgrupos da etnia cigana] sofreram com o preconceito, o trabalho escravo, a esterilização e o genocídio simplesmente por causa da sua identidade. Isso não são coisas com que se deva brincar”, afirma. “A ignorância sobre este passado recente é abundante e deve ser abordada. Apelamos a que todos procurem informar-se sobre o passado e as experiências atuais deste povo.”
Curiosamente, Carr não deixou que a punchline fosse o fim do tema. Ainda durante o especial de comédia e imediatamente após o riso do público, o comediante justificou-se. “Esta é uma boa piada por três motivos: o primeiro, porque tem uma piada do caralho, parabéns a mim. Segundo, porque é uma piada sobre a pior coisa que aconteceu em toda a história. As pessoas dizem para ‘nunca esquecermos’, e esta é a forma de eu fazer precisamente isso: estar constantemente a falar sobre o assunto.”
Havia, porém, uma terceira razão: “O terceiro motivo pelo qual esta é uma boa piada é porque tem qualidade educativa. Toda a gente sabe que seis milhões de judeus morreram durante a II Guerra Mundial”, nota. “O que muita gente não sabe, até porque não nos é ensinado, é que os nazis também mataram milhares de ciganos, homossexuais, deficientes e Testemunhas de Jeová.”
Carr usou, claro, esta abordagem para preparar o terreno da piada seguinte, mas mostrou a intencionalidade da piada ainda antes da onda de críticas. Aliás, o especial de comédia chama-se “His Dark Material”, o seu material mais negro, em tradução livre, o que deixaria já adivinhar que estaria carregado de humor negro, como é seu hábito.
Como se isso não fosse suficiente, Carr arranca o especial com um aviso feito no palco. “O espetáculo de hoje contém piadas sobre coisas terríveis. Coisas essas que podem ter-vos afetado a vós ou a pessoas que vocês amam. Mas são apenas piadas. Não são as tais coisas terríveis.”
“Existe uma enorme diferença entre fazer uma piada sobre uma violação e violar alguém. Espero eu. Ou então vou ficar na prisão para o resto da minha vida.”
Entretanto, o comediante aproveitou um espetáculo ao vivo este sábado, 5 de fevereiro, para fazer a sua primeira reação à controvérsia. “Vais falar sobre o Holocausto?”, terá gritado um dos espectadores. “Vamos falar sobre a cultura de cancelamento, sobre tudo”, respondeu Carr.”
“Meus amigos, estamos neste momento no lugar das últimas oportunidades. O que eu estou a dizer neste palco já é dificilmente aceitável atualmente. Daqui a dez anos, esqueçam esta merda”, disse sobre o futuro da comédia. “Vou ser cancelado, essas são as más notícias. As boas notícias é que não me irei sem dar luta.”
A piada causadora de toda a controvérsia está até longe de ser a primeira tentativa arriscada de Carr, que se gaba habitualmente de abordar temas possivelmente polémicos. “A piada que termina a minha carreira está por aí, no YouTube, na Netflix, onde for. E está tudo muito bem até que um dia está tudo fodido”, notou.
Foi precisamente essa a advertência que deixou novamente durante o especial “His Dark Material”, antes de arrancar para o segmento que poderia “acabar com a carreira”. “Escrevi algumas piadas com potencial para acabarem com a minha carreira. Acho que está na altura de nos mentalizarmos de que serei cancelado algures nos próximos anos, certo?”
“Não irei sem dar luta”, explicou. “Costumava preocupar-me com o fato de fazer uma piada tão ofensiva que me deixaria sem trabalho, mas isso era eu a pensar como um floco de neve de género fluído.”
“Nada disso. Vocês pagaram um bom dinheiro para verem um comediante ousado, certo? Estaria em falta se não vos desse isso mesmo”, afirmou. “Não é uma questão de ofender pessoas, é para fazer as pessoas rir. Se eu ofendo algumas pessoas, isso é só um bónus.”
Nada disto é surpreendente para quem conhece o historial de Jimmy Carr, que tem por hábito abordar temas como o Holocausto, a SIDA, a fome ou a pedofilia. Entre os fãs do comediante, há um particular hábito de fazer rankings com as piadas mais potencialmente ofensivas de Carr, que até já elegeu a sua preferida.
“Se África tivesse mais redes mosquiteiras, todos os anos poderíamos salvar milhões de mosquitos de morrerem desnecessariamente infetados com SIDA”, explicou em 2016, depois de questionado sobre qual a piada mais arriscada que já escreveu.
Voltou a eleger uma nova piada num espetáculo “Being Funny” de 2011, com uma punchline que ficou reservada para o final. “Como é que fazem com que um gay foda uma mulher?”, questionou. “Cagam-lhe na cona.”
A abordagem recente ao Holocausto não é sequer novidade, como revelou anteriormente em palco, numa piada que acabou por não ter o impacto que se verifica hoje. “Dizem que andar em grupo é mais seguro. Digam isso a seis milhões de judeus”, brincou. E voltou ao tema: “Quando andava na escola, um miúdo foi apanhado a bater uma nos duches. Arruinou toda a viagem a Auschwitz.”